Desfazimento do contrato de promessa de compra e venda de imóveis, o distrato ganhou ainda mais destaque em meio à crise econômica vivida pelo Brasil e a necessidade do mercado imobiliário de criar normas equilibradas para regularizar o assunto.

Sem regulamentação, o contrato de compra e venda de imóveis na planta pode ser desfeito e a construtora recebe de volta o bem. Na prática, ao consumidor que adquirir um imóvel na planta e não tiver mais interesse na concretização da compra, seja por circunstâncias financeiras ou não, caberá desfazer o contrato – no período anterior à entrega das chaves.

Para a advogada e presidente da OAB/AL, Fernanda Marinela, a melhor regulamentação para os distratos é o bom senso. “Os distratos são a antítese dos contratos, sendo assim, eles devem seguir as normas gerais escritas no Código Civil. Mas existem ainda algumas leis que tratam de contratos específicos, como por exemplo a Lei do Inquilinato, que tem algumas regras mais específicas. Porém, o que prevalece mais, em qualquer caso, é a vontade das partes. Neste sentido, costumo dizer que a ‘regulamentação ideal’ é o bom senso. Cabe às partes que estão distratando estabelecerem regras para formalizarem o distrato em termos aceitáveis para ambos os lados. É como um divórcio: Se as partes usarem de bom senso e excluírem o fator emocional, o distrato tende a ser mais fácil e rápido, caso contrário será um processo longo e doloroso, com prejuízos para ambos os lados”, frisa a advogada.

Funcionário público, o engenheiro civil Nicolas Alves Souto optou pelo distrato por julgar mais viável comprar um imóvel pronto. “Minha decisão pelo distrato foi rápida. Em 15 dias desisti da aquisição do imóvel e fui à construtora solicitar o distrato. Já tinha pago quase R$11 mil e perdi R$1 mil. Comprei um apartamento pronto, porque vi que era mais vantagem. Com o distrato, capitalizei mais dinheiro para a entrada e consegui um negócio mais vantajoso – sem a necessidade de pagar a taxa de obras”.

Segundo o advogado Daniel Brabo, do escritório Brabo Magalhães Advogados, a legislação brasileira reservar ao consumidor o direito de arrependimento pela compra, mas os percentuais de devolução não estão fixados e variam de acordo com cada situação.

“O Código do Consumidor resguarda o direito do consumidor de vir a se arrepender de um negócio realizado e poder distratar sem perder tudo que fora desembolsado. Não existe na legislação percentual fixado a título de multa pelo desfazimento do negócio, mas em alguns casos, a exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo, acerca de negócios imobiliários, o TJSP assinou acordo com as construtoras, em que entende que 20% de multa seria um percentual aceitável de punição ao consumidor. É certo que em outras situações esse percentual poderá ser variável, a depender de custos envolvidos na negociação, valor envolvido, etc.”, explica Daniel Brabo.

De acordo com levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), quase 41 mil unidades vendidas foram canceladas em todo o Brasil, no acumulado de janeiro a novembro de 2016.

“A incidência do distrato tem aumentado substancialmente nos últimos anos, criando forte insegurança jurídica e gerando prejuízos para o mercado imobiliário. É um problema sistêmico que exige uma solução urgente. A construção civil tem defendido uma solução na qual os contratos sejam equilibrados, dando responsabilidade às partes, em especial o ressarcimento das despesas que uma possa gerar à outra”, disse o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), o engenheiro civil José Carlos Martins.

Uma das maiores incorporadoras do Brasil, a Cyrela registrou o maior volume de distratos da história no ano passado – foram R$2,3 bilhões somente em 2016 e R$ 6,1 bilhões no acumulado dos últimos três anos.

A esperança da incorporadora é o avanço das medidas econômicas lançadas pelo governo federal, mas o copresidente da Cyrela, Raphael Horn, tem consciência da retomada lenta do crescimento. “O ânimo está melhor, mas a realidade do setor não melhorou muito”, disse à imprensa.

Esperança de acordo

O assunto já virou tema de diversas reuniões entre membros do governo, construtoras e de defesa do consumidor, súmulas da Justiça e projeto de lei federal e, apesar das opiniões controversas entre os diversos setores influenciados, todos querem uma regulamentação para o distrato.

“Em nossa proposta estão incluídas cláusulas que punem o atraso na entrega do imóvel; o ressarcimento de despesas com a contratação da venda; clareza e transparência nas informações do contrato etc. Nossa expectativa é ter uma regulação que proteja todos os compradores de um empreendimento, incluindo aqueles que querem o imóvel e pagam por ele, e garanta a saúde financeira do projeto”, informa o presidente da CBIC.

Sempre atento as principais discussões sobre este tema, o Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon-AL) está acompanhando de perto todo o desenrolar da situação e se posicionando quanto a necessidade de uma regulamentação para a segurança do mercado imobiliário.

“O setor da construção civil sofre bastante, pois a insegurança jurídica é muito grande. Apesar de termos contratos preparados conforme a legislação, a falta de uma regulamentação dificulta as decisões judiciais”, argumenta o presidente do Sinduscon-AL Alfredo Brêda.

O sindicato alagoano é membro do conselho da CBIC e o presidente Alfredo Brêda acredita na força da entidade para posicionar uma solução eficaz a todas as partes. “A solução ideal seria a elaboração de uma lei que deixasse claro os direitos e deveres de compradores e vendedores. O setor da construção, através da CBIC, vem trabalhando em um acordo nacional, com participação de representantes de todas as partes envolvidas, para que juntos possamos construir uma solução para este grande problema”, declara Brêda.

Construtora x Consumidor

De um lado, incorporadoras fazem propostas onde a base de cálculo é feita sobre o valor do imóvel, em um percentual entre 10 e 12%. Já representantes dos órgãos de defesa do consumidor defendem que a penalidade seja descontada apenas do valor pago.

Para o fundador da incorporadora EZTec, Ernesto Zarzur, em casos de distratos, a perda deve ser totalmente do comprador. “O cliente tem de perder tudo, como disse o Elie Horn. Amanhã, na hora de distratar, a pessoa pensará bem”, declarou à imprensa.

A preocupação da indústria da construção civil é que o distrato pode ser responsável pela perda de receita futura do empreendimento, além de desproteger quem comprou o imóvel e espera a entrega.

Construtoras argumentam que a penalidade ressarcida apenas sobre o valor pago pelo consumidor é distorcida e fora da realidade adotada pelos bancos credores, o que prejudica o desenvolvimento do empreendimento. Uma prática comum no Brasil é o uso de cerca de 70% de empréstimo bancário para a construção do empreendimento.

Especialistas econômicos veem a necessidade latente de um marco regulatório para os distratos, sob o risco sistêmico de para o setor imobiliário, impactando a viabilidade de construção do empreendimento e finalização da obra.

A insegurança jurídica vai além de consumidor desistente e construtora. Em um terceiro vértice deste tripé existe o comprador que adquiriu o imóvel e sofre com as consequências dos distratos alheios.

“Quem adquiriu imóveis tem o direito de receber, isso é fato! É muito comum ocorrer que obras sejam realizadas por meio de garantia bancária, sendo esse um dos meios mais seguros aos consumidores, que terão a garantia de que se a construtora vier a ter dificuldades em finalizar a obra, o seguro efetivado dará as condições financeiras para que a obra venha a ser concluída”, disse o advogado Daniel Brabo.

A falta de regras claras para estabelecer obrigações e direitos das partes leva frequentemente a disputa entre consumidor e construtora para a esfera judicial. Normalmente, o entendimento do Poder Judiciário é em favor do consumidor, dando-lhe o direito a ressarcimento de 90% do valor pago à construtora.

O Superior Tribunal de Justiça definiu em 2015, por meio da súmula 543, a restituição imediata ao distrato das incorporadoras para o consumidor – proibindo que o pagamento fosse feito ao final da obra. A Corte também entendeu, em outra decisão, ser razoável a retenção de 10 a 25% do valor pago, mas a decisão não é regra.

A presidente da OAB/AL Fernanda Marinela avalia positivamente as decisões tomadas pelo Poder Judiciário de Alagoas. “O Judiciário Alagoano tem seguido o entendimento definido no novo CPC, com foco numa conciliação prévia e na solução baseada no bom senso. Tenho visto ótimas decisões que tem na ‘vontade’ das partes o foco principal, sem esquecer as penalidades e das disposições que os contratos estabelecem. Na minha opinião, as empresas e pessoas que se envolvem corriqueiramente em tais situações de direito privado deveriam já estabelecer contratualmente a mediação e arbitragem como a forma de solucionar os distratos entre particulares. É uma fórmula muito usada em todos os países desenvolvidos. Rápida, justa e eficaz”.

“O cliente tem de perder tudo. Amanhã, na hora de distratar, a pessoa pensará bem”

Ernesto Zarzur – Fundador da incorporadora EZTec

Pacto assinado

No ano passado foi criado um acordo para criar regras para o distrato. Com a finalidade de dar previsibilidade e segurança às partes, representantes do governo federal, de entidades do segmento imobiliário, dos órgãos de defesa do consumidor e da Justiça assinaram um pacto que estabelece dois critérios de multas aos compradores que desistirem do negócio.

Na primeira opção, a penalidade é 10% do valor do imóvel, desde que não ultrapasse 90% do valor pago. Assim, se o imóvel vale R$ 400 mil e foram pagos R$ 40 mil, apenas R$ 4 mil são devolvidos ao comprador. Já na segunda opção, o comprador perde o sinal e 20% do valor já pago. Na prática, se o comprador pagou R$ 15 mil de sinal e R$ 20 mil de parcelas, só terá direito a receber R$16 mil.

Vale ressaltar que a adesão ao termo é voluntária e pretende também minimizar o número de ações levadas a Justiça. O respeito a estes regras é obrigação apenas para entidades participantes do pacto, que já foi assinado entidades de abrangência nacional.

A pretensão do governo federal era de incluir a regularização da prática no pacote de medidas anunciado pelo governo para incentivar o mercado imobiliário, mas a falta de acordo impediu que consolidasse uma proposta equilibrada e satisfatória.

“Se o governo optar por medida provisória, me parece a melhor saída e a mais rápida”, disse o presidente da Abrainc, Rubens Menin, em entrevista coletiva à imprensa.

Mas já existe em tramitação desde 2015 o Projeto de Lei 774, de autoria do senador Romero Jucá, que propõe a pena convencional de até 25% das quantias pagas, além da comissão de corretagem de 5% do preço de venda. A justificativa do senador para é baseada na segurança jurídica das relações econômicas e sociais decorrentes destas negociações imobiliárias.

“A necessária coordenação entre essas normas, ante a eventualidade de desfazimento de contrato por inadimplemento das obrigações do adquirente, é situação merecedora de especial atenção, visando evitar que normas especiais sejam consideradas e, ainda, afastar simplificações irrefletidas que levem a distorções capazes de atingir a equação econômica na qual se estrutura a incorporação imobiliária”, justificou o senador.

Para a advogada Fernanda Marinela, ler e analisar o contrato é fundamental para ficar protegido em qualquer situação. “A regra de ouro é contratar um advogado para analisar o contrato ser firmado, ele já vai prever o que ocorrerá em caso de distrato. Além disso: atenção quando for assinar um contrato, prevenção, respeito às regras e bom senso. Tudo são flores na hora da assinatura de um contrato, mas quase ninguém atenta para as cláusulas. Hoje muitas pessoas/empresas usam o Judiciário de má-fé, contando – inclusive contabilmente – com a demora do Poder Judiciário para a solução de um eventual distrato. Isso é muito injusto e penaliza sempre aquele que tem o direito ao seu lado. As partes, ao realizar o contrato, podem se prevenir com o estabelecimento de regras justas e autos aplicáveis, também com cláusulas que evitem o judiciário e estabeleçam mediadores ou árbitros para solucionar eventuais conflitos”, aconselha.